Pode um grande carnívoro ser um polinizador? O lobo etíope adora néctar e é o primeiro a ser identificado

O comportamento único, observado entre os grandes predadores das terras altas da Etiópia, levou os cientistas da Universidade de Oxford a querer aprofundar a investigação sobre interações atípicas entre plantas e animais.

Lobo etíope
O lobo etíope é viciado no néctar da Kniphofia foliosa, planta que cresce nas terras altas da Etiópia. Foto: Divulgação/ Adrien Lesaffre

Entre julho e outubro, a época das chuvas regressa aos solos ressequidos das montanhas Bale, na Etiópia, entre mais altas do continente africano. Os campos enchem-se de cores com a vegetação da tundra alpina.

Este é também o momento para assistir ao grande espetáculo da natureza, oferecido pela Kniphofia foliosa. Por esta altura, a espécie, endémica da região, desabrocha em cachos de flores semelhantes a tochas de fogo.

O néctar desta planta é uma fonte de alimento para inúmeros insetos e aves polinizadores, mas estas espécies não são as únicas atraídas pela sua doçura. Entre as várias visitas que recebe, um visitante inesperado surpreendeu os investigadores da Universidade de Oxford.

O lobo etíope (Canis simensis) parece ter também uma predileção pelo pólen desta erva. Foi isso que os biólogos concluíram quando viram estes predadores a lamber a cabeça desta flor em forma de cone, parecendo visivelmente satisfeitos.

O seu comportamento assemelha-se em quase tudo a de um típico polinizador. À medida que avançam de flor em flor, o seu focinho polvilhado de pólen ajuda a planta a se reproduzir.

Comportamento inédito entre os grandes predadores

A descoberta, publicada na revista científica Ecology, descreve uma prática inédita não somente desta espécie, mas levantando também a hipótese de esta interação entre planta e polinizador ser a primeira conhecida a envolver um grande carnívoro.

Lobo etíope
Um só lobo etíope visita entre 20 e 30 flores de seguida, levando no seu focinho o pólen que ajuda a Kniphofia foliosa a se reproduzir. Foto: Divulgação/ Adrien Lesaffre

O lobo etíope é um canídeo esguio do tamanho de um cão de grande porte, com uma pelagem avermelhada, manchas brancas na garganta e no peito e uma cauda preta espessa. Também conhecido como chacal vermelho, vive apenas na Etiópia, em algumas terras que se elevam a 3500 metros de altitude e acima das florestas tropicais.

Com menos de 500 animais, distribuídos por 99 alcateias, é o carnívoro mais ameaçado de África, estando em perigo de extinção, segundo a Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza.

Intrigados pelo seu interesse na Kniphofia foliosa, os investigadores seguiram seis lobos etíopes de três alcateias ao longo de vários dias, registando tudo o que viam. “Tipicamente, o lobo aproximou-se de uma haste [da planta] e lambeu as flores mais maduras, localizadas na parte de baixo da inflorescência, e que contêm mais néctar”, descrevem os autores do artigo científico.

As observações permitiram concluir que um só animal é capaz de visitar entre 20 e 30 flores numa única visita, com cada lambidela a demorar entre três 15 segundos. Embora tenham demonstrado um grande apetite pelo néctar da planta, os investigadores acreditam que não se trata da sua fonte principal de alimento.

A espécie geralmente caça pequenos roedores, como os ratos das pradarias, servindo a Kniphofia foliosa como uma deliciosa sobremesa para rematar as suas refeições. A doçura desta planta, aliás, atrai também as crianças e os pastores, que vivem nestas montanhas, e que colhem as flores para sugar o seu néctar.

Os humanos, todavia, não desempenham uma ação polinizadora, ao contrário dos focinhos dos lobos etíopes, cobertos de pólen, que transportam os grãos produzidos pelas flores para as outras plantas da mesma espécie.

Uma aprendizagem de pais para filhos

Há décadas que se sabe que a polinização não é exclusiva dos insetos. São várias as espécies de aves, répteis ou ainda os morcegos-da-fruta que cumprem essa função essencial para a reprodução das plantas. Mas o caso do lobo etíope, a confirmar-se, é o primeiro entre os grandes mamíferos.

Lobo ibérico
Os investigadores observaram que os lobos etíopes mais velhos ensinam os mais novos a retirar o néctar da Kniphofia foliosa. Foto: Divulgação/ Adrien Lesaffre

Tudo indica que se trata de um comportamento generalizado entre a população de lobos-etíopes, com os mais velhos a ensinarem os mais novos. Existe alguma evidência de aprendizagem social – conclui o comunicado da Universidade de Oxford – acrescentando que os investigadores observaram as crias a imitarem os progenitores.

“Estes achados chamam a atenção para o quanto temos ainda de aprender sobre um dos carnívoros mais ameaçados do mundo. Também demonstram a complexidade de interações entre diferentes espécies que habitam no bonito Teto de África”
Sandra Lai, investigadora na Universidade de Oxford e autora principal do estudo.

Com novos exemplos de espécies polinizadoras, como roedores e outros pequenos mamíferos, a serem identificadas mais recentemente, os autores do estudo alertam para a importância de aprofundar a investigação sobre interações mutualísticas atípicas entre plantas e animais.

A descoberta mais recente aconteceu, aliás, por mero acaso. Os investigadores encontravam-se nas montanhas Bale no âmbito do Programa de Conservação do Lobo Etíope.

A iniciativa foi lançada há quase 30 anos, em 1995, para proteger esta espécie e o ecossistema das terras altas da Etiópia, ameaçados de fragmentação e perda de habitats. A parceria envolve a Universidade de Oxford, no Reino Unido, a Autoridade Etíope para a Conservação da Vida Selvagem e ainda uma ONG local, a Dinkenesh Ethiopia.

Referência da notícia

Lai, S., Lesaffre, A., Samune, A. Et al. Canids as pollinators? Nectar foraging by Ethiopian wolves may contribute to the pollination of Kniphofia foliosa. Ecological Society of America (2024)