O que são as bactérias espelho? Os cientistas alertam acerca dos seus perigos para a vida humana e para os ecossistemas

A investigação no domínio da biologia sintética atingiu um marco intrigante e alarmante: o desenvolvimento de organismos criados a partir de moléculas que são imagens espelhadas das que se encontram nos seres vivos naturais.

bacterias
Apesar de ser considerado um bom avanço no mundo científico, este tipo de bactérias pode trazer malefícios para diversos ecossistemas.

As “bactérias-espelho” representam um avanço tecnológico sem precedentes, mas também um risco potencialmente catastrófico para a humanidade e o ecossistema global. Um novo estudo alerta para o facto de estes microrganismos sintéticos poderem ultrapassar as defesas imunitárias dos seres humanos, dos animais e das plantas.

Para além disso, a sua possível dispersão no ambiente apresenta riscos irreversíveis. Segundo os autores, liderados por Katarzyna P. Adamala, o momento de prevenir estas ameaças é agora, antes que os avanços tecnológicos tornem viável a sua criação.

A quiralidade como chave para a compreensão das bactérias espelho

Em 1848, o químico francês Louis Pasteur descobriu que certas moléculas podem existir em formas que não se sobrepõem como imagens de espelho. Este fenómeno é conhecido como quiralidade. Pasteur observou que os cristais de ácido tartárico desviavam a luz polarizada em direções opostas, dependendo da sua forma, o que o levou a concluir que esta assimetria molecular é uma caraterística distintiva dos compostos orgânicos.

Esta descoberta lançou as bases para a compreensão da homoquiralidade nos seres vivos, ou seja, a preferência por uma orientação quiral específica nas moléculas biológicas. A ideia da “vida em espelho”, composta por moléculas de quiralidade oposta, foi proposta por Pasteur e tem intrigado os cientistas desde então.

A quiralidade é, portanto, uma propriedade geométrica de certas moléculas que faz com que não se sobreponham à sua imagem no espelho, como é o caso das mãos humanas, que, embora semelhantes, são opostas e não encaixam perfeitamente umas nas outras.

bactérias
É impossível inocular o planeta contra estas bactérias, uma vez que seriam invisíveis aos mecanismos de defesa naturais e resistentes aos tratamentos existentes.

Em todos os seres vivos conhecidos, o ADN é composto por nucleótidos dextrógiros (luz rotativa para a direita) e as proteínas são compostas por aminoácidos levógiros (luz rotativa para a esquerda). Esta disposição quiral é essencial para as interações moleculares que sustentam a vida. A criação de organismos com quiralidade invertida desafia esta lógica biológica, gerando estruturas inteiramente novas que não podem ser processadas pelos sistemas vivos atuais.

Esta diferença quiral permite que as bactérias-espelho evitem ser reconhecidas pelos sistemas imunitários. De acordo com o artigo, os sistemas imunitários dos seres humanos, animais e plantas seriam incapazes de detetar e combater estas ameaças, tornando-as extremamente perigosas. Poderiam causar infeções letais que se espalhariam rápida e incontrolavelmente. Uma armadilha mortal.

Esta diferença quiral permite que as bactérias-espelho evitem ser reconhecidas pelos sistemas imunitários. (...) os sistemas imunitários dos seres humanos, animais e plantas seriam incapazes de detetar e combater estas ameaças, tornando-as extremamente perigosas.

Mas a resistência destas bactérias aos processos naturais de degradação também amplifica o problema. Em vez de serem mortas pelos predadores microbianos habituais, estas bactérias podem acumular-se e proliferar no ambiente. Isto representa um risco global para a biodiversidade, semelhante ao impacto das espécies invasoras, mas a uma escala molecular.

Os avanços tecnológicos e a sua faca de dois gumes

O desenvolvimento de bactérias-espelho continua a exigir a superação de barreiras técnicas significativas. No entanto, os recentes avanços na biologia sintética reduziram estas limitações. Os investigadores conseguiram sintetizar proteínas e ácidos nucleicos espelhados. Estas moléculas, inicialmente destinadas a aplicações farmacêuticas não degradáveis, permitem agora vislumbrar a criação de organismos completos.

A chave está na construção de células sintéticas. Uma vez dominada a tecnologia de montagem de células funcionais a partir de componentes artificiais, o salto para a criação de organismos com quiralidade invertida será inevitável. Embora possa abrir portas a inovações médicas e científicas, esta evolução apresenta também riscos bioéticos e ecológicos difíceis de gerir.

investigação científica
Os avanços tecnológicos muitas vezes podem ter tanto de bom como de mau.

Os especialistas sublinham também a dificuldade de conter estes organismos caso se libertem no ambiente. Segundo o professor Vaughn Cooper, da Universidade de Pittsburgh, é impossível inocular o planeta contra estas bactérias, uma vez que seriam invisíveis aos mecanismos de defesa naturais e resistentes aos tratamentos existentes.

Impacto sanitário e ecológico

As bactérias-espelho podem ter um efeito devastador nos sistemas imunitários dos organismos vivos. A sua capacidade de escapar à resposta imunitária tornaria letais as infeções comuns. Mas o seu perigo não se limita à saúde humana. No ecossistema, estas bactérias podem deslocar espécies naturais quando não são controladas por predadores microbianos normais.

A análise sugere que as bactérias-espelho são suscetíveis de escapar a muitos mecanismos imunitários mediados por moléculas quirais, causando potencialmente infeções letais em seres humanos, animais e plantas.

Um exemplo relevante é o caso dos bacteriófagos, vírus especializados na destruição de bactérias. Devido à quiralidade invertida, os bacteriófagos não reconheceriam as bactérias espelho, permitindo-lhes proliferar sem restrições. Esta situação não afetaria apenas os ecossistemas locais, mas poderia desencadear uma crise ecológica global ao perturbar cadeias alimentares e ciclos biológicos essenciais.

Como é que um risco tão extremo pode ser evitado?

Dada a magnitude do perigo, os autores deste artigo propõem medidas urgentes e coordenadas. A primeira recomendação é suspender toda a investigação destinada a criar bactérias-espelho. Embora essas tecnologias ofereçam aplicações promissoras, como a produção de compostos resistentes, os riscos superam os benefícios.

investigação
Suspender toda a investigação destinada a criar bactérias-espelho é a primeira recomendação dos autores deste estudo para evitar males maiores.

Sugere-se também a adoção de uma regulamentação global rigorosa para controlar as tecnologias que podem facilitar a criação destes organismos. Com base em modelos como as Diretrizes de Biossegurança de Tianjin, os peritos defendem uma abordagem internacional que envolva cientistas, governos e sociedade civil.

O desenvolvimento das bactérias-espelho simboliza tanto o potencial como os perigos da biologia sintética. Embora estas tecnologias ainda estejam a anos de distância de serem viáveis, os recentes avanços exigem que a comunidade global atue com cautela e responsabilidade. Só através de uma regulamentação rigorosa e de um diálogo aberto será possível proteger a humanidade e o ambiente dos riscos associados a estes organismos revolucionários e perigosos.

Referência da notícia

Adamala K., Agashe D., Belkaid Y., et al. Confronting risks of mirror life. Science (2024).