Condições climáticas contribuíram para as pandemias de cólera dos séculos XIX e XX, aponta estudo
Estudo analisou dados históricos da Índia e do Bangladesh e sugere que as anomalias climáticas favoreceram a substituição e a propagação de estirpes emergentes de cólera. Uma conclusão alarmante face ao aumento dos extremos climáticos devido ao aquecimento global.
Um estudo liderado pelo Instituto de Salud Global de Barcelona (ISGlobal) destaca o papel sinérgico das alterações climáticas e patogénicas no surgimento e disseminação de doenças infeciosas. A combinação da evolução patogénica e de anomalias climáticas, como aquelas vividas durante eventos como o El Niño, contribuíram significativamente para a disseminação da cólera, aponta o estudo.
Durante o século XIX, a cólera disseminou-se pelo mundo a partir do seu reservatório original no delta do rio Ganges, na Índia. As seis pandemias que se seguiram mataram milhões de pessoas em todos os continentes. A atual (sétima) começou no sul da Ásia em 1961, atingiu a África em 1971 e as Américas em 1991.
Desde 2022 que o número de casos de cólera tem vindo a aumentar acentuadamente em muitos países, particularmente em regiões do globo com condições socioeconómicas precárias.
Uma dúvida ainda por dissipar
A forma como as diferentes pandemias de cólera se têm espalhado pelo mundo tem gerado um intenso debate na comunidade científica, recaindo a suspeita sob uma alteração genética da bactéria.
Durante a sétima pandemia, a estirpe dominante denominada “Classical” foi gradualmente substituída por outra estirpe “El Tor”, contra a qual as pessoas tinham menos imunidade. Os investigadores suspeitam que as condições climáticas também podem ter desempenhado um papel de facilitador da disseminação regional da estirpe emergente.
O grupo de investigadores, utilizou registos históricos e examinou as ligações entre os padrões climáticos e as mortes por cólera em diferentes províncias da antiga Índia Britânica durante a sexta pandemia de cólera (1899-1923). Puderam comparar estas descobertas com a sétima pandemia mais recente e o breve surgimento de uma nova estirpe no Bangladesh.
Como tal, utilizaram métodos estatísticos avançados para estudar como os surtos em diferentes regiões estavam conectados e como estes se relacionavam com mudanças na temperatura e na precipitação, particularmente durante eventos como o El Niño, que provoca flutuações climáticas significativas e condições climáticas extremas.
Uma das descobertas mais marcantes foi a sincronização de surtos de cólera na região de Bengala, o que é um sinal de uma nova estirpe de cólera para a qual a população não tinha imunidade. Isso foi acompanhado por um evento El Niño de 1904 a 1907.
Parecia que condições climáticas anormais, semelhantes às vistas no final do século XX durante as expansões da cólera na África e América do Sul, desempenharam um papel crucial em ajudar a nova estirpe a superar a anterior. Em particular, a precipitação incomum durante 1904-05, que é considerada uma das mais extremas já registadas, pareceu fornecer as condições perfeitas para que a nova estirpe de cólera pudesse prosperar e espalhar-se.
As descobertas indicam que as mudanças genéticas na estirpe dominante da cólera, combinadas com condições climáticas incomuns, levaram ao surgimento e à disseminação da sexta pandemia. Ainda assim, os autores ressalvam que a facilitação climática nem sempre leva a uma nova substituição de estirpe, a menos que as novas estirpes já estejam a disseminar-se no ambiente e possam assumir o controle.
Os autores destacam que anomalias climáticas ainda maiores no passado recente nem sempre foram acompanhadas por novas estirpes que tenham substituído as anteriores. Estes resultados destacam a dinâmica não linear de tais relações e a necessidade de uma ação conjunta de ambos os fatores na mesma direção.
As condições climáticas e a origem de novas estirpes
As descobertas também ressaltam o papel das condições ambientais na geração de oportunidades para a disseminação de novas variantes ou novos patógenos.
Mercedes Pascual, autora do estudo e investigadora da Universidade de Nova York.
Para os investigadores é necessário entender e prever melhor a dinâmica de patógenos sensíveis ao clima, como aqueles transmitidos pela água ou vetores. Esse entendimento é particularmente importante para prevenir e mitigar futuras pandemias, à medida que enfrentamos uma crescente variabilidade climática e extremos devido ao aquecimento global.
Referência da notícia:
Rodó X, Bouma MJ, Rodriguez Arias MA, et al. (2024). Strain variation and anomalous climate synergistically influence cholera pandemics. Plos NTD.