Avião espião convertido em laboratório revela a emissão frequente de radiação Gamma nas tempestades tropicais

Uma equipa de investigadores utilizou um avião espião reconvertido da NASA para estudar a emissão de radiação Gamma nas tempestades elétricas tropicais. A descoberta revelou que esse fenómeno é mais comum e complexo do que se pensava.

Gamma Análise
Tempestades elétricas foram analisadas com base num avião da NASA (ER-2), que detetou e avaliou as radiações Gamma.

A exploração das tempestades elétricas sempre se constituiu como um desafio para a ciência. Embora os princípios gerais da formação de raios e relâmpagos sejam conhecidos, vários são os detalhes sobre o que ocorre durante as tempestades, que até então permaneciam desconhecidos.

Recentemente, uma equipa de investigadores fez uma descoberta surpreendente sobre a emissão de radiação Gamma durante tempestades elétricas, revelando que é um fenómeno mais comum e complexo do que se pensava.

Avião da NASA ER-2 ajuda na explicação da emissão de radiação Gamma nas tempestades elétricas tropicais

A descoberta foi feita graças a um avião espião reconvertido pela NASA, o ER-2, que realizou uma série de voos sobre tempestades tropicais no Golfo do México, América Central e Caraíbas durante o verão de 2023. Este avião, que pode atingir altitudes até aos 20 quilómetros, o dobro da altura alcançada por aviões comerciais, sobrevoou diretamente a parte superior das tempestades, onde a radiação Gamma é gerada.

Os resultados, publicados recentemente na revista Nature, demonstraram que a maioria das tempestades elétricas emite radiação Gamma de forma constante e em diferentes formatos.

O líder da investigação, Nikolai Østgaard, professor de física espacial da Universidade de Bergen, na Noruega, destacou o potencial único do ER-2 para estudar este tipo de radiação.

“O ER-2 seria a plataforma de observação definitiva para os raios gamma de tempestades", afirmou Nikolai Østgaard.

Ao voar tão perto das nuvens de uma tempestade, a equipa foi capaz de captar dados que antes eram impossíveis de obter com outros instrumentos, como os satélites, que não estavam otimizados para detetar radiação Gamma proveniente da Terra.

A radiação Gamma foi observada pela primeira vez nos anos 90 do Século XX, quando satélites da NASA projetados para estudar supernovas e outros objetos espaciais detetaram explosões de energia provenientes da Terra. Foi rapidamente compreendido que as tempestades elétricas estavam na origem destes estalidos de radiação de alta energia.

Contudo, a frequência e a complexidade destes eventos ainda se constituíam como elementos desconhecidos. A investigação realizada com o ER-2 veio contribuir para conhecer melhor o fenómeno, revelando que não só é mais comum do que se pensava, mas também que ocorre de formas até então desconhecidas.

De acordo com o investigador Steve Cummer, coautor do estudo e professor de Engenharia na Universidade de Duke, praticamente todas as tempestades elétricas de grande porte geram radiação Gamma. “Durante as tempestades elétricas acontecem muitas mais coisas do que imaginávamos”, afirmou.

Segundo Cummer, o estudo mostrou que há vários tipos de emissões Gamma, incluindo explosões extremamente rápidas, com durações inferiores a um milésimo de segundo, e outras que ocorrem em sequência ao longo de uma décima de segundo.

O mecanismo associado à emissão de radiação Gamma envolve o movimento de partículas carregadas dentro da nuvem de tempestade. Com o desenvolvimento da tempestade, as correntes de ar impulsionam partículas de gelo, granizo e gotas de água, separando as cargas elétricas.

As partículas positivamente carregadas são empurradas para a parte superior da tempestade, enquanto as cargas negativas descem para a base da nuvem, criando um campo elétrico que pode ser extremamente forte. Quando os eletrões se encontram neste campo intenso, aceleram e, ao colidirem com moléculas de ar, desencadeiam reações nucleares que produzem a radiação Gamma.

Embora as tempestades elétricas sejam mais frequentes em regiões tropicais, Østgaard afirmou que este fenómeno também pode ocorrer em latitudes mais altas, como em Espanha, ainda que menos frequentemente.

Radiação Gamma pode ajudar a melhorar as previsões meteorológicas

A nova compreensão sobre o comportamento da radiação Gamma nas tempestades pode ter implicações importantes para o estudo da meteorologia e da física atmosférica.

Um dos aspetos mais intrigantes desta descoberta foi a identificação de dois novos tipos de estalidos de radiação Gamma que nunca tinham sido observados antes. Estes estalidos não parecem estar diretamente relacionados com os raios, surgindo de forma espontânea dentro da nuvem. Estes fenómenos podem estar associados aos processos que iniciam os relâmpagos.

Apesar da frequência da emissão de radiação Gamma, os cientistas asseguram que não representa um risco significativo para os passageiros de aviões. Cummer destacou que a radiação seria perigosa apenas se alguém estivesse muito próximo da fonte de emissão. Além disso, como os aviões comerciais evitam voar dentro de tempestades elétricas devido às turbulências e ventos extremos, o risco de exposição direta à radiação Gamma é muito baixo.

Para além de expandir o conhecimento sobre a dinâmica das tempestades elétricas, esta investigação pode também ter aplicações práticas. O investigador Martin Fullekrug, da Universidade de Bath, sugeriu que as descobertas podem ajudar a melhorar as previsões meteorológicas e a emissão de alertas precoces sobre as tempestades, contribuindo para mitigar os seus efeitos negativos.


Referência da notícia:

Marisaldi, M.; Østgaard, N.; Mezentsev, A.; Lang, T.; Grove, J.E.; Shy, D.; Heymsfield, G.M.; ... Santos, A. (2024). Highly dynamic gamma-ray emissions are common in tropical thunderclouds. Nature 634, 57–60. https://doi.org/10.1038/s41586-024-07936-6