Maui: Um desastre anunciado, uma nova realidade
O incêndio em Muai, Hawai, veio demonstrar uma nova e preocupante realidade, a de que estes fenómenos estão cada vez mais agressivos e estão a alterar profundamente o planeta. Veja mais aqui!
Com 99% da área do incêndio que devastou a cidade de Lahaina examinada pelas autoridades, duas semanas após o desastre, a investigação sobre as suas causas parece apontar para supostas falhas da principal empresa de energia do estado.
As autoridades afirmaram que a empresa concessionária falhou por negligência ao manter em funcionamento a rede de energia (uma prática comum noutros estados norteamericanos propensos a incêndios), apesar dos ventos excecionalmente fortes impulsionados pela passagem do furacão Dora, de categoria 4, que atravessava o oceano Pacífico a centenas de quilómetros do arquipélago, e das condições de seca presentes na ilha.
Grande parte do Hawai estava sob alerta vermelho por risco de incêndio quando os incêndios florestais eclodiram.
A isso, acresce o fato de a concessionária ainda manter uma rede considerada obsoleta, da década de 1960, com fios despidos e sem qualquer isolamento e postes de madeira em fim de vida útil, o que incumpre uma diretiva nacional datada de 2002.
Devido a estas falhas, as linhas de energia operadas pela concessionária provocaram uma série de incêndios mortais na ilha. Estes começaram a 8 de agosto e espalharam-se por aquele território insular, aumentando em tamanho e poder destrutivo. A 9 de agosto as autoridades declaravam estado de emergência.
Os incêndios ceifaram a vida a, pelo menos, 115 pessoas. De acordo com o Departamento de Polícia de Maui, 40 das vítimas foram, até agora, identificadas e as suas famílias notificadas. Permanecem desaparecidas 388 pessoas e as autoridades solicitaram aos seus familiares amostras de ADN para facilitar a sua procura e identificação.
Cálculos do governo federal sugerem que o incêndio tenha custado cerca de 5,5 mil milhões de dólares em danos.
Ventos fortes, vegetação seca e baixa humidade
Os efeitos devastadores dos incêndios em Maui foram o produto de uma confluência de condições meteorológicas: ventos fortes, vegetação seca e baixa humidade. Podemos com eles encontrar similitudes com o que se sucedeu em Portugal no ano de 2017.
Em Outubro de 2017, o furacão Ophelia (o maior formado em 50 anos no Atlântico oriental) influenciava fortemente os incêndios no nosso país, principalmente a partir do dia 14 desse mês, já como tempestade extratropical, criando condições para a sua propagação e evolução em dimensão.
Esses incêndios reclamaram a vida de, pelo menos, 50 pessoas no nosso país, afetaram mais de 220 mil hectares de território, cerca de 190 mil dos quais de floresta, perto de 1.500 casas e mais de meio milhar de empresas. Apesar do trabalho árduo dos milhares de operacionais empenhados no combate aos incêndios em Portugal, 7 dezenas de pessoas ficaram feridas nas mais de 900 ignições registadas entre 14 e 16 de outubro.
Também à semelhança do que se passara no nosso país naquele fatídico ano, também na ilha havaiana a humidade dos combustíveis era baixíssima, principalmente dos combustíveis mais finos, que muito ajudaram na propagação dos incêndios, como é possível ver nos vários vídeos publicados.
O incêndio que destruiu 58% da cidade de Lahaina teve início numa zona de interface (ou seja, zona de contacto entre áreas rurais e urbanas) e aproveitou os combustíveis em redor da cidade para se alimentar e ganhar dimensão, passando depois para o núcleo urbano, onde aproveitou o combustível presente dentro do mesmo. Para isto, muito contribuiu a vulnerabilidade física do edificado, maioritariamente revestidos por madeira e, por isso, altamente inflamável.
Estamos a viver as alterações climáticas em tempo real
Situações como estas são exacerbadas, especialmente por culpa da acumulação na atmosfera de dióxido de carbono (CO2) e de outros gases com efeito de estufa, como o metano, devido à contínua emissão destes desde o início da industrialização.
A última vez em que a atmosfera teve uma concentração superior a 400 partes por milhão de CO2 foi no Pliocénico, entre há 5,3 e 2,6 milhões de anos, quando o planeta era 2 a 3 graus mais quente, os camelos viviam no Ártico e o nível médio das águas do mar estava 15 metros acima do de hoje. Em Janeiro deste ano, a concentração de CO2 era de 418 ppm, um aumento de quase 50% em relação aos valores pré-industriais.
Trocamos de combustíveis. As queimas industriais não foram alimentadas por combustíveis vegetais vivos, mas, sim, por combustíveis fósseis. A queima desse material alterou a atmosfera e começamos a aquecer o planeta.
Muito porque a relação do Homem com o fogo mudou. O fogo bom praticamente já não existe. Os solos responderam, degradando-se ecologicamente, ao mesmo tempo que acumularam combustíveis para alimentar incêndios mais violentos. Quanto mais tentarmos remover o fogo de locais que coevoluíram com ele, mais violentamente o fogo retornará.
Os incêndios de agora não são como os de antes, tornaram-se mais agressivos e estão a alterar profundamente o planeta, deixando-nos no alvorecer de uma era que poderíamos chamar de piroceno, a Era do Fogo, uma época em que as chamas, e não as enxadas ou o gado, são a principal forma transformadora das paisagens.
Tudo indica que estamos diante de um ponto de viragem. Um momento em que, talvez pela primeira vez desde a conquista do fogo, perdemos o controle sobre ele.
Os locais que estão habituados ao fogo, como grande parte do território português, agora provavelmente experimentarão fenómenos com maior frequência e intensidade. Locais que não têm uma relação comum com o fogo, podem vir a adquiri-la.
Este incêndio em Maui veio demonstrá-lo. Um incêndio rápido, alimentado pelas condições piro-meteorológicas, numa zona de interface, em zona costeira, que nos faz pensar e verificar que mesmo territórios pouco habituados ao fogo, e com condições biogeográficas idênticas no nosso país, não estão isentas de lidar com tais fenómenos extremos. Há que estar preparado!