Do folar à guerra dos ovos: tradições da Páscoa que o tempo quase apagou

Páscoa sem coelho? Bem-vindo à verdadeira tradição portuguesa, com rituais perdidos, chocolates importados e alguns fantasmas.

Páscoa
Antes do chocolate: uma viagem às Páscoas esquecidas de Portugal. Foto: Unsplash

A Páscoa tal como a conhecemos hoje em pouco se assemelha àquela que era vivida há muitos anos. Aliás, os ovos de chocolate, o cabrito assado e as selfies com o folar, são apenas a ponta do icebergue de uma história muito mais rica, peculiar e, por vezes, completamente inesperada.

Sabia que o coelho da Páscoa nunca viveu em Portugal? Quando pensa na Páscoa, é provável que imagine um coelhinho fofo a distribuir ovos de chocolate com uma eficiência quase mágica. Mas... e se lhe dissermos que esse coelho nunca pôs as patas em solo português até há bem pouco tempo? E que os ovos, afinal, começaram por ser cozidos e pintados à mão, muito antes de ganharem recheio de creme e papel metalizado?

Pois é. O famoso Osterhase nasceu na Alemanha no século XVII. Era um coelho mágico que punha ovos (não pergunte como), escondia-os nos jardins e deixava-os como prenda para crianças bem comportadas. Era algo como o Pai Natal da primavera, versão lagomorfa.

A tradição atravessou o Atlântico com imigrantes alemães e ganhou força nos Estados Unidos, onde tudo é elevado à potência máxima — coelhos gigantes, ovos em plástico, caças ao tesouro em parques inteiros.

E em Portugal? Chegou muito mais tarde, importado já no século XX, embrulhado em papel colorido... e marketing.

Quanto aos ovos, em Portugal, quem mandava era a galinha (ou o padre). Confuso? Durante séculos, o símbolo dominante da Páscoa por cá não era o coelho, mas sim o ovo verdadeiro.

Cozido, pintado ou oferecido em cestos, o ovo era sinal de fertilidade, renascimento e fartura.

Em muitas regiões, era comum as crianças oferecerem ovos às madrinhas na Páscoa — uma tradição chamada “pão-por-Deus pascal”, que evoluiu mais tarde para o famoso folar da madrinha. E claro, havia também o Compasso Pascal — nada de coelhos aqui, mas sim o padre da paróquia a visitar casa a casa com a cruz e a água benta, saudado com comida e, por vezes, uma boa aguardente.

Sim, porque, enquanto no mundo anglo-saxónico se fala de “Easter Ham” ou “Hot Cross Buns”, nós, por cá, preferimos algo mais robusto: cabrito assado com batatinhas e grelos. E se não houver forno, venha o borrego, o pato, ou até a chanfana. O importante é que a mesa esteja cheia.

Páscoa
Não pode faltar uma mesa recheada. Foto: Unsplash

A origem desta tradição é bíblica, claro — o cordeiro pascal remete para o sacrifício do Antigo Testamento — mas por cá tornou-se sobretudo um símbolo de celebração e partilha.

É verdade. Se fizer uma viagem pelo tempo vai descobrir tradições pascais que, ao longo dos séculos, foram desaparecendo como amêndoas numa mesa de domingo. Quer dar uma espreitadela a esses rituais esquecidos? Vamos a isso.

A bênção do gado

No interior de Portugal, era comum que, no domingo de Páscoa, o padre passasse de casa em casa, não só para abençoar a família e a comida, mas também os animais. E, atenção, porque era um ritual sério: galinhas, coelhos, ovelhas, tudo alinhado para receber água benta.

Diz-se que dava saúde ao rebanho e garantia uma boa produção de leite e ovos.

Hoje, infelizmente, o máximo que muitos animais recebem é um story no Instagram com o filtro “Happy Easter”.

Folares... com ovos verdadeiros e... carne lá dentro?

Se pensa que o folar é só um bolo seco que acompanha café, desengane-se. Antigamente, o folar era uma verdadeira oferenda — e variava muito de região para região.

Em algumas zonas do norte, colocavam-se ovos cozidos no topo do folar. Noutras, recheava-se com carnes curadas — uma bomba calórica e simbólica: o fim do jejum da Quaresma merecia festa no estômago.

A “guerra dos ovos”, uma espécie de paintball medieval

Na região de Trás-os-Montes, há relatos antigos de jovens que organizavam verdadeiras “guerras de ovos” na Segunda-feira de Páscoa. Para isso, usavam ovos crus (que dói mais) ou cozidos (que duram mais).

Páscoa
Uma tradição quase esquecida. Foto: Unsplash

A ideia era simples: acertar nos rapazes ou raparigas da aldeia por quem se tinha um fraquinho... ou uma zanga.

A “procissão das almas” — mais assustadora do que parece

Em certas aldeias, durante a Semana Santa, existia o costume de fazer procissões noturnas em silêncio absoluto. Durante a cerimónia, levavam-se cruzes e tochas, em homenagem às almas do purgatório.

Era um ritual de respeito… e, para quem passava por ali sem saber, um susto dos antigos.

Estas procissões, aos poucos, deram lugar a tradições mais “iluminadas”, mas há quem ainda se lembre do friozinho na espinha ao ver silhuetas entre as brumas da serra.

O beijo pascal

No século XIX, era comum, em algumas freguesias do Alentejo, os vizinhos darem um “beijo pascal” — um cumprimento cerimonial na manhã de Páscoa, mesmo entre pessoas que mal se falavam durante o ano. Era como um reset social, um “vamos lá recomeçar”.

Um adeus às tradições… ou apenas um intervalo?

Muitas destas tradições estão esquecidas, mas não necessariamente perdidas. Em algumas aldeias, há movimentos de resgate cultural que procuram trazê-las de volta, mesmo que seja só uma vez por ano. Quem sabe, com o interesse e a curiosidade, podem até ganhar nova vida.

Afinal, celebrar a Páscoa não é só comer chocolate — é também lembrar de onde vimos, como vivíamos e, acima de tudo, como partilhávamos.

Se este ano for até à terra ou visitar alguma festa local, esteja atento. Pode ser que por trás do folar esteja uma história antiga, ou que no sino da igreja ainda ecoe o som de um ritual esquecido. A Páscoa é feita de fé, sim — mas também de memórias. E, às vezes, é nas mais antigas que se encontra a maior beleza.