Do bacalhau ao combate ao desperdício: qual o destino das partes do peixe que não são utilizadas pelos portugueses?

O "fiel amigo" é habitué na mesa dos portugueses, em especial neste período de festas, fazendo de Portugal um dos maiores consumidores do mundo deste peixe. Mas nem todas as partes são aproveitadas nas mesas nacionais, para onde irão?

O "fiel amigo" (Gadus Morhua) da mesa dos portugueses é pescado em águas gélidas e inóspitas do Atlântico Norte e consegue ser recriado, na culinária nacional, em mais de um milhar de receitas.

Bacalhau, um dos reis da culinária portuguesa e certamente o rei e senhor da quadra natalícia. Muitos foram, por certo, aqueles que degustaram esta iguaria na noite da Consoada e que ajudam a engrossar o já destacado lugar de Portugal na lista dos países maiores consumidores deste peixe.

Afinal diz-se que existem 1001 maneiras de confecionar o “fiel amigo”, um produto que está enraizado na tradição nacional, ainda mais nesta época de Natal. Dados do ano anterior avançados pelo Norwegian Seafood Council (NSC) estimam que os portugueses consumam, em média, 15 quilos e que o consumo na época natalícia represente 30% do total.

Das 1001 receitas conhecidas do Gadus Morhua, o verdadeiro bacalhau, as partes mais utilizadas são as postas e os lombos, mas há também quem faça das caras, da língua ou dos samos (bexigas-natatórias) verdadeiras iguarias. Então, nem todo o bacalhau é aproveitado nas mesas nacionais.

Sustentabilidade dita a regra no combate ao desperdício

A verdade é que o bacalhau tem muito mais que se aproveite e, fossem os portugueses beneficiar-se dele na sua plenitude, quem sabe não estaríamos a falar de centena de milhar de receitas (mesmo que mal contabilizadas). O que será então feito das outras partes, para onde irão, quem as consumirá?

As respostas a estas e outras perguntas podem ser encontradas junto de quem, diariamente pesca e transforma estes exemplares. Husøy é um dos centros nevrálgicos do bacalhau, um ilhéu localizado num dos muitos fiordes de Senja, no extremo norte da Noruega, no círculo polar Ártico.

A primeira referência à pesca do bacalhau pelos portugueses data de 1353, quando D. Afonso IV (rei de Portugal) e Eduardo III de Inglaterra estabelecem um acordo que pesca que permitia a armadores lusos pescar na costa inglesa por 50 anos.

É deste ilhéu do extremo norte da Noruega que são exportados, por ano, 6000 toneladas de bacalhau, para o nosso país, exatamente a mesma quantidade que aqui é salgada de um total de 10000 expedidas.

Husøy, onde o frio e a neve do círculo polar Ártico não dão tréguas, e onde a lei da natureza se impõe, os portugueses compõem cerca de 8% da população.

É aqui que encontramos a empresa norueguesa BR Karlsen, fábrica dedicada à transformação do bacalhau e onde trabalham mais de uma dezena de portugueses, número que aumenta entre os meses de janeiro e março, época em que a pesca do bacalhau atinge o seu pico.

Husøy, inóspita, fica rodeada de uma estonteante natureza e, também por isso, a BR Karlsen tem no combate ao desperdício uma das suas filosofias. A sua CEO, Rita Karlsen, neta de um dos fundadores, garante que aqui “tudo se aproveita no bacalhau”.

Por cá o “fiel amigo” chega com a imperativa salga, que se segue da maturação ou tempo de cura. Em seguida, passa-se à secagem, período de tempo determinado de acordo com o tamanho e o peso do peixe. Em casa, demolha-se, escolhe-se uma das 1001 receitas e delicia-se.

Segundo os dados registados pelo Conselho Norueguês das Pescas, entre janeiro e novembro de 2024, Portugal é o país que ocupa o primeiro lugar no top 10 da lista dos principais mercados de exportação de bacalhau no que toca ao volume e ao valor.

As exportações de bacalhau para terras lusas representam 25 por cento, já o valor de negócios representa 36 por cento. A preocupação agora passar pela redução das cotas de pesca, que certamente trará consequências na exportação para Portugal no biénio 2025/2026.

Em Portugal, as postas e os lombos do bacalhau são muito apreciados, mas as caras, os samos e as línguas são também consideradas belas iguarias. Ainda assim, há todo o resto do peixe que se aproveita e serve outras culinárias pelo mundo.

Tudo se aproveita, nada se desperdiça

Aquilo que os portugueses não aproveitam, fazem os outros manjar. Nesta fábrica, tanto o fígado, transformado em óleo de bacalhau, o fluído seminal e as ovas, como espinha dorsal, a cabeça e a língua são aproveitados e vendidos para todo o mundo.

As cabeças do bacalhau têm a Nigéria como destino gastronómico. Este é um dos ingredientes utilizados na confeção da mais popular sopa daquele país, a “Edikaikong”. Por sua vez, a espinha dorsal viaja até à Ásia, tendo o gigante mercado chinês como principal paragem.

O Japão é outro dos mercados de exportação de subprodutos do bacalhau, nomeadamente o fluído seminal. Este é usado no shirako, que também é feito com o sémen de arenque. A textura é macia e é servido com arroz branco ou em sopas.

Já as ovas de bacalhau são o caviar da Noruega. Quanto ao fígado, é extraído o óleo, que também fica neste país nórdico, muito apreciado como suplemento alimentar rico em vitamina D, nutriente essencial para melhorar a absorção e manutenção dos níveis de cálcio no sangue.