Bocas e dentes: como as representações de tubarões nos media espalham o medo irracional
Quase meio século depois do primeiro filme Tubarão ter feito sucesso nos cinemas, um medo irracional de tubarões permanece enraizado na sociedade. Como é que as características deste animal impactam a nossa perceção?
"Nunca mais entrará na água..."
O infame slogan do filme Tubarão de 1975 ainda pode deixar os nervos à flor da pele hoje, quase meio século depois do thriller ter sido lançado nos cinemas.
É um filme icónico, possivelmente um dos mais célebres do género ‘recurso de criatura’ (creature feature). Muitas vezes, estes filmes retratam animais como tubarões, cobras ou aranhas como vilões e têm um valor de entretenimento inquestionável, mas o seu impacto na psique humana pode ser profundo.
Este é o foco de um novo estudo publicado na revista Journal of Environmental Media, que produziu a primeira análise dos animais que aparecem em filmes sobre criaturas.
Medo irracional e o efeito Tubarão
Em declarações ao Desert Island Discs da BBC Radio 4 em 2022, o lendário diretor de Tubarão, Steven Spielberg, falou sobre o impacto que o seu filme teve nas populações de tubarões nos anos seguintes, afirmando que foi algo "que realmente se arrepende até hoje".
A pesca desportiva de tubarões aumentou substancialmente nos Estados Unidos após 1975, resultando naquilo que Spielberg descreveu como um "frenesim alimentar de pescadores de espadas malucos".
A influência do filme Tubarão na perceção das pessoas sobre estes animais foi tão grande que deu nome ao “efeito Tubarão” – um fenómeno reconhecido em que as pessoas têm medo excessivo e irracional destas maravilhas marinhas.
O medo não é surpreendente, dado que investigações anteriores revelaram que 96% dos filmes que envolvem tubarões retratam a interação tubarão-humano como ameaçadora. Os tubarões são os animais mais comuns vistos em filmes de criaturas, estrelando exemplos recentes bem conhecidos, como The Shallows (2016) e The Meg (2018). São frequentemente descritos como assassinos implacáveis, predadores movidos pela sede de sangue humano.
“Como a maioria das pessoas não tem interações pessoais com tubarões, muito do que sabemos sobre os tubarões vem do que vemos na TV ou nos filmes", disse Brianna Le Busque, especialista em tubarões da Universidade do Sul da Austrália e autora principal do estudo.
"Filmes como Tubarão, The Meg ou The Shallows retratam tubarões que caçam e atacam humanos propositadamente, o que não só cria medo excessivo, mas fortalece quaisquer opiniões negativas que as pessoas já possam ter", acrescentou ela.
Tubarões são as vítimas, não os vilões
O problema não está apenas no cinema. A aversão aos tubarões é muito utilizada pelos media, que muitas vezes transformam histórias de ataques de tubarões em sensacionalismo e acompanha-as com imagens evocativas destinadas a dar medo.
No entanto, os ataques de tubarão são raros. Os autores destacam o facto de que nas águas do sul da Austrália, os ataques de tubarões ocorreram em média apenas um por ano nos últimos 20 anos. Globalmente, os ataques fatais de tubarões são de apenas 5 a 15 por ano.
Para colocar isto em perspetiva, cerca de 70 pessoas nos Estados Unidos são mortas por cortadores de relva todos os anos, e cerca de 500 pessoas em África são mortas por hipopótamos anualmente. No entanto, ao contrário dos ataques de tubarões, estes incidentes raramente chegam às notícias globais.
A tragédia do efeito Tubarão é que, desde o lançamento do primeiro filme, as populações de tubarões diminuíram 70%. Uma em cada três espécies está agora ameaçada de extinção e mais de 100 milhões de tubarões são mortos todos os anos pelos seres humanos, para alimentação ou apenas desporto.
Assassinos implacáveis? Predadores com sede de sangue? Talvez estas sejam representações que deveríamos reservar para nós mesmos.